"Este livro trata de um tempo em que romances eram cobiçados e perseguidos, em que eles pareciam ter se espalhado por todos os lugares, tomando conta de bibliotecas, livrarias e jornais, em que se liam romances para devanear e para pensar em questões políticas e filosóficas, um tempo em que ser autor de romances dava algum dinheiro, mas não muito prestígio. É para esse tempo e para esses temas que se convida o leitor."
O romance moderno surgiu na Europa do século XVIII como um gênero bastardo, sem tradição nem contornos bem definidos. Numa época em que ainda vigorava a estética neoclássica e em que a preceptiva estabelecida pelos retores orientava a escrita e os juízos críticos, a falta de estirpe do recém-chegado à cena literária lhe angariou preconceitos e exigiu dos romancistas um grande esforço para justificá-lo e conferir-lhe respeitabilidade. Sua ascensão e seu processo de formação foram marcados, dessa maneira, por uma intensa discussão travada em prefácios, cartas, resenhas e artigos a respeito de sua natureza, seus fins e escopo. Ao mesmo tempo, por não exigir de seus leitores conhecimento especializado e por debruçar-se sobre a vida cotidiana dos homens comuns e tratar dos problemas que lhes eram próximos e caros, o romance logo ganhou impressionante popularidade, tornando-se uma espécie de porta-voz da nova sociedade que se formava sobre as ruínas do mundo feudal. Ocupando o centro das mudanças econômicas, sociais e políticas que deram origem ao mundo burguês, Inglaterra e França constituíram o lócus privilegiado onde o novo gênero veio a florescer e a se desenvolver e de onde se disseminou para outros lugares.
Todo esse processo ocorreu antes que o Brasil passasse a ser uma nação independente e, apesar de todos os obstáculos estruturais que dificultavam a circulação dos livros em nosso país, notadamente a inexistência da imprensa, a censura prévia e o pequeno número de livrarias, mesmo antes de 1822 os romances já podiam ser encontrados na América Portuguesa. Pelo menos desde a segunda metade do século XVIII, eles atravessaram o Atlântico e podiam ser lidos para a “instrução” e o “deleite” de seus apreciadores. Com a chegada da Família Real e a abertura dos portos em 1808, o Brasil foi lentamente se integrando ao circuito livreiro, passando a ser um lugar de destino dos romances europeus, nos seus mais diferentes suportes – livros, jornais, revistas. Se o Rio de Janeiro foi, na maior parte das vezes, um ponto de chegada e um importante centro irradiador, os romances igualmente aportaram, por diferentes vias, em locais mais distantes ao longo do século XIX, como se lerá nos capítulos que se ocupam da presença deles em diferentes estados e cidades do país. As evidências de sua difusão para diversos cantos, dessa maneira, relativizam a imagem de uma nação sem livros e sem leitores e revelam, por um ângulo de grande interesse, os momentos iniciais da formação de nosso sistema literário, antes mesmo da criação do romance brasileiro, assim como seus desdobramentos posteriores.
“Trajetórias do romance: circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII e XIX” narra um capítulo importante da história do romance no Brasil, ao mesmo tempo que amplia os pontos de vista por meio dos quais podemos compreendê-la. Graças ao recurso a inúmeras fontes pouco utilizadas pelas histórias literárias mais tradicionais – anúncios de jornal, catálogos de bibliotecas e gabinetes de leituras, inventários, pareceres de censores, processos inquisitoriais, entre outros –, esse alentado estudo oferece um quadro muito mais complexo, mais rico e mais problematizado da inserção do nosso país no circuito literário oitocentista, a partir de diversos ângulos complementares que associam os níveis da produção e da recepção. Da mesma forma, faz cair por terra velhos lugares comuns críticos, mostrando como, naquele período, não se estabeleciam rígidas hierarquias entre o que hoje a crítica considera como obras canônicas e não-canônicas. Sobretudo, expõe uma sociedade partícipe da circulação do conhecimento e dos modelos narrativos, diversa, porém não alheia aos movimentos das idéias, integrante do sistema literário mundial. As diferentes trajetórias do romance, seu longo caminho para a consagração, que só vai ocorrer já quase ao final do século XIX, são o grande assunto desse livro, que se constitui como uma fundamental contribuição para a compreensão da história de um gênero que, se nasceu bastardo, transformou-se na principal e mais influente forma literária dos séculos XIX e XX. (Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos)
TEMAS ABORDADOS NA OBRA:
INTRODUÇÃO
LITERATURA E HISTÓRIA – PRESENÇA, LEITURA E ESCRITA DE ROMANCES
Márcia Abreu
PRIMEIRA PARTE -- DA PRESENÇA DOS ROMANCES
“SAHIRAM À LUZ”: LIVROS EM PROSA DE FICÇÃO PUBLICADOS PELA IMPRESSÃO RÉGIA DO RIO DE JANEIRO
Simone Cristina Mendonça de Souza
O MENTOR DAS BRASILEIRAS: GÊNERO, FICÇÃO E POLÍTICA EM UM PERIÓDICO DA PROVÍNCIA DE MINAS GERAIS (1829-1832)
Luciano da Silva Moreira
A PROSA DE FICÇÃO BRITÂNICA NO GABINETE DE LEITURA (1837-1838)
Maria Angélica Lau P. Soares
POSSE E CIRCULAÇÃO DE ROMANCES: A NOVELA EDUARDO E LUCINDA, OU A PORTUGUESA INFIEL NA VILA OITOCENTISTA DE SÃO JOÃO DEL-REI, MINAS GERAIS
Christianni Cardoso Morais
O RECREADOR MINEIRO (OURO PRETO: 1845-48): HISTÓRIA, ROMANCE-FOLHETIM E IDENTIDADE NACIONAL NO PRIMEIRO PERIÓDICO LITERÁRIO DE MINAS GERAIS
Guilherme de Souza Maciel
ROMANCE DE SENSAÇÃO INGLÊS POR VIÉS BRASILEIRO: CONDIÇÕES DA PUBLICAÇÃO DE AURORA FLOYD EM A VIDA FLUMINENSE
Maria Eulália Ramicelli
SOBRE A LEITURA E A PRESENÇA DE ROMANCES NAS BIBLIOTECAS E GABINETES DE LEITURA BRASILEIROS
Nelson Schapochnik
ENTRE CONTRATOS E RECIBOS: O TRABALHO DE UM EDITOR FRANCÊS NO COMÉRCIO LIVREIRO DO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA
Alexandra Pinheiro
CIRCULAÇÃO DE ROMANCES NOS PERIÓDICOS MATO-GROSSENSES DOS OITOCENTOS
Eni Neves da Silva Rodrigues
EM BUSCA DE ROMANCES: UM PASSEIO PELO CATÁLOGO DA LIVRARIA GARNIER
Juliana Maia de Queiroz
ROMANCES EM CIRCULAÇÃO E POSSIBILIDADES DE ACESSO AOS LIVROS EM CAMPINAS NA DÉCADA DE 1870
Sílvia Aparecida José e Silva
LUGARES DE COMPRA, ITINERÁRIOS DE LEITURA: CIRCULAÇÃO DE ROMANCES EM FORTALEZA OITOCENTISTA
Ozângela de Arruda Silva
SEGUNDA PARTE -- DA LEITURA DOS ROMANCES
ROMANCES E LEITURAS PROIBIDAS NO MUNDO LUSO-BRASILEIRO (1740-1802)
Luiz Carlos Villalta
O “MUNDO LITERÁRIO” E A “NACIONAL LITERATURA”: LEITURA DE ROMANCES E CENSURA
Márcia Abreu
DOS ROMANCES À INCONFIDÊNCIA MINEIRA DE 1789
André Pedroso Becho
ROMANCES E A FORMAÇÃO DE UM CLIMA DE OPINIÃO NO RIO DE JANEIRO EM 1794
Raphael Rocha de Almeida
CRUZANDO O ATLÂNTICO: NOTAS SOBRE A RECEPÇÃO DE WALTER SCOTT
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos
RECEPÇÃO CRÍTICA DA PROSA FICCIONAL DE JOAQUIM MANUEL DE MACEDO
Leandro Thomaz de Almeida
DO GOSTO INCULTO À APRECIAÇÃO DOUTA: A CONSAGRAÇÃO DO ROMANCE NO BRASIL DO OITOCENTOS
Valéria Augusti
TERCEIRA PARTE -- DA ESCRITA DOS ROMANCES
PRETENSÃO À FIDALGUIA E FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO EM TOM JONES E NAS MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS
Gabriela Hatsue Yuasa Azeka
CÂNDIDO, OU O OTIMISMO, DE VOLTAIRE E RECREAÇÃO FILOSÓFICA, DE TEODORO DE ALMEIDA: ROMANCE E CIÊNCIA EM PORTUGAL DO SÉCULO XVIII
Diogo Lúcio Pereira Vieira
CARTAS AMERICANAS: ROMANCE E IDÉIAS POLÍTICAS NA ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA
João Paulo Martins
DOIS LUGARES, DOIS TEMPOS: CHARLES DICKENS E MACHADO DE ASSIS
Daniel Puglia
MIMÉTICOS, ACLIMATADOS E TRANSFORMADORES: TRAJETÓRIAS DO ROMANCE-FOLHETIM EM DIÁRIOS FLUMINENSES
Ilana Heineberg
TEIXEIRA E SOUSA – A TRAJETÓRIA DE UM ROMANCISTA BRASILEIRO EM BUSCA DA CONSAGRAÇÃO
Hebe Cristina Da Silva
MACHADO DE ASSIS E OS ANOS 1870: PRIMEIROS ROMANCES
Marta Cavalcante de Barros
JOSÉ DE ALENCAR – NACIONALIDADE LITERÁRIA E FORMA ROMANESCA
Hebe Cristina da Silva
FRANKLIN TÁVORA E O NORTE NO ROMANCE BRASILEIRO
Cristina Betioli Ribeiro
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÍNDICE ONOMÁSTICO