INTRODUÇÃO: O LIVRO DOS LIVROS
"Hoje tem bastante livro.
É livro pra jardim, é livro de nome, livro de receita.
Cada um fala de uma coisa. O almanaque não.
Ele tem de tudo. Muita coisa boa pra se
saber usar. Pra passar o tempo também."
O livro de Margareth Brandini Park sobre os almanaques farmacêuticos brasileiros é uma bela e importante contribuição à história da produção, da circulação e da leitura das obras de grande difusão. Ele confirma que é muito arriscado qualificar sem nuanças o almanaque de "popular". Certo, seu público é bem popular, se se entende por isso que ele é formado por muitos leitores que pertencem aos meios pobres e mais humildes da sociedade. O almanaque é um livro destinado a todos e que todos, mesmo os menos letrados ou os analfabetos, podem "ler".Mas, desde o século XVIII ou o século XVII, mesmo antes, o almanaque é um gênero ao mesmo tempo literário e editorial utilizado para difundir textos de natureza extremamente diferente. Daí o sucesso perpetuado de um livro que pode ser, ao mesmo tempo, útil e prazeroso, didático e de devoção, tradicional e "esclarecido". Essa diversidade organiza a tipologia das obras, dos simples calendários, que indicam os santos de cada dia e as fases da lua, até os almanaques poéticos ou enciclopédicos. Ela se encontra igualmente no seio de muitos almanaques compostos de textos capazes de responder a todas as demandas, de satisfazer a todas as necessidades. "Ele tem de tudo", como declara Carlos, um dos leitores de almanaques entrevistados por Margareth Brandini Park. Saberes antigos e proposições modernas. Sua originalidade está ligada a três características: todos foram ou são publicados por laboratórios farmacêuticos que os utilizam como suporte publicitário para os fortificantes e seus medicamentos; todos foram e são distribuídos gratuitamente pelos farmacêuticos; todos aceitam as cartas, as contribuições de seus leitores, assim transformados em co-autores do livro. Sua importância para a cultura brasileira se mede em sua enormes tiragens de dois ou três milhões de exemplares e a sua forte presença nas lembranças de leitura, ou de escuta, dos mais modestos leitores.
No Brasil do século XX, os almanaques farmacêuticos assumem, como alguns de seus precursores europeus, a tarefa da educação sanitária e moral do maior número de pessoas. Fazendo uma aliança original entre publicidade comercial, normas familiares e projeto de higienização, eles se inscrevem, a sua maneira, na filiação dos almanaques "esclarecidos" e pedagógicos do tempo das Luzes. Mas no contexto do Estado moderno, eles são igualmente os portadores de um projeto de reforma e de civilização identificado ao destino da nação e, para alguns, da raça. O Almanaque Biotônico Fontoura fornece a mais espetacular tradução desse objetivo com o folclórico personagem Jeca Tatuzinho, criado por Monteiro Lobato. Circulando entre o almanaque, os folhetos e os livros para crianças, o personagem encarna o possível e necessário progresso que fará do caboclo miserável e degenerado um cidadão são, instruído e útil.
A publicação das cartas dos leitores é apenas uma das formas da ligação estabelecida pelo almanaque entre leitura e escritura. Em certos casos, é o objeto impresso ele mesmo que demanda a escritura de seu leitor. É o que o ocorre nos anos 30 com o Almanaque Iza, do laboratório Kraemer, que deixa espaços para que sejam anotados os acontecimentos, as tarefas a fazer, as lembranças e as contas. Dando, assim, atenção aos encontros entre o livro editado e a escritura manuscrita, o trabalho de Margareth Brandini Park se inscreve em uma das mais novas orientações de pesquisa que se desenvolveu nesses últimos anos.
Durante muito tempo, com efeito, a história da leitura e a história da escritura foram separadas. A primeira, nascida como um prolongamento natural da história do livro, da história da literatura ou da bibliografia à moda inglesa e americana, privilegiou a medida dos níveis de alfabetização (ou de letramento) e da desigual presença do livro em uma dada sociedade, depois ela se prendeu a reconstituir as maneiras de ler e as revoluções da leitura. Já a história da escritura focalizou sua atenção nos livros manuscritos, nas capacidades gráficas dos indivíduos, nos usos sociais da escrita. Se a história da leitura foi antes de tudo alemã, inglesa e francesa, a das produções e práticas da escrita a mão se definiu no seio da paleografia italiana e, mais recentemente, espanhola. Durante muito tempo, leitura e escritura foram assim constituídas como domínios de estudo separados, mobilizando saberes específicos, ilustrando tradições nacionais diversas. Nesses últimos anos, a atenção posta nos escritos ordinários, aqueles do indivíduo, da família, da pequena manufatura ou do pequeno comércio, revelou a importância da produção manuscrita no meio popular nas sociedades do Antigo Regime. As formas são múltiplas: cadernos de segredos e de receitas, registros de contas, diários de família, correspondências, relatos de vida. Esses objetos escritos testemunham as novas exigências de uma economia artesanal e comercial, que supõe cada vez mais o registro escrito das transações e o desejo dos indivíduos de um melhor controle de seu tempo através de uma escritura do presente, produzida dia a dia, e da memória do passado confiada à escritura. Desde os séculos XVII e XVIII, novos objetos impressos se abrem a essa escritura do cotidiano: assim ocorre na Inglaterra, com os almanaques nos quais são intercaladas páginas em branco, ou na Itália, com as primeiras agendas, que deixam, para cada dia da semana ou para cada parte do dia, espaços para as anotações pessoais. As observações sutis de Margareth Brandini Park sobre as relações entre a forma impressa e a escritura dos leitores nos almanaques farmacêuticos fazem-nos esperar por outros estudos reavaliando os usos e as funções da escrita no Brasil contemporâneo. O objetivo é claro: compreender as múltiplas ligações tecidas entre as práticas de leitura e as de escritura, mas sem separá-las de outras formas de transmissão cultural: as imagens, o canto, a recitação poética, os jogos teatralizados.
Esta obra é também uma magnífica investigação sobre a memória da leitura. Entrecruzando as cartas endereçadas por 246 leitores e leitoras aos redatores do Almanaque Renascim Sadol, da Farmácia Catarinense, com uma série de entrevistas com alguns dentre esses leitores, ela constrói uma tipologia das maneiras de ler o almanaque (para os outros ou para si mesmo, com voz alta ou baixa ou com os olhos somente, por utilidade ou por divertimento) e mostra que a relação com esse livro dos livros é, freqüentemente, tão forte quanto aquela estabelecida com o texto sagrado. As palavras dos leitores mais humildes fazem da descoberta, portanto das leituras coletivas e solitárias do almanaque, o instrumento da conquista maravilhada da escrita.
O livro de Margareth Brandini Park testemunha, de maneira muito bonita, a vitalidade das pesquisas sobre a história e a sociologia do livro, da leitura e da escritura realizadas no Brasil. Não há, sem dúvida, outro país no mundo em que esse campo de pesquisa seja tão vigoroso e inventivo, entrecruzando saberes e disciplinas a serviço de um projeto comum. Mas sobre essa trama partilhada cada um tece motivos particulares, com sua curiosidade, sua sensibilidade e sua emoção. Com esta obra consagrada ao livro dos livros que é o almanaque, vocês irão penetrar no segredo das memórias e dos corações.
Roger Chartier